O professor e filósofo Vladimir Safatle, da USP, mostrou de forma brilhante o sinistro legado que José Serra deixou para a política brasileira: a criação de uma corrente de diretia radical que, nos EUA, se chama de Direita Cristã e, no momento, paralisa o sistema político americano com o movimento Tea Party.
A candidatura Serra, durante todo o primeiro turno, nunca empolgou eleitoralmente. Não cresceu. Começou a crescer de verdade quando o Serra resolveu flertar com setores conservadores da sociedade brasileira, ou seja, os setores mais conservadores da igreja – teve votação expressiva no chamado cinturão do agronegócio – e também com a fina flor do pensamento conservador.
Isso poderia parecer uma estratégia eleitoral. De fato, mostrou uma coisa que a gente não sabia: existe um pensamento conservador forte no Brasil e esse pensamento tem voto. Pode ser mobilizado por questões relativas à modernização dos costumes. Um exemplo, ainda no governo Fernando Henrique, quando José Gregori era secretário dos Direitos Humanos, aprovaram o PNDH 2 [Programa Nacional de Direitos Humanos], em 2002.
E se você for ver, por exemplo, no capítulo sobre o aborto, ele é idêntico, fora uma ou duas palavras, ao PNDH 3, que foi criticado durante a campanha eleitoral. Parece que foi um processo deliberado, problemático, que coloca questões sobre o que vai ser sua candidatura daqui para a frente. Terminou prometendo que seria contra a lei da homofobia em encontro com pastores evangélicos.
Com isso, Serra destampou uma franja eleitoral que estará presente no debate nos próximos quatro anos. Esse tipo de pauta não vai desaparecer. Vai voltar em vários momentos. A primeira questão é saber como isso vai se configurar. Até porque existe uma tendência mundial de construir um pensamento conservador que tem forte densidade eleitoral. A gente vê isso nos EUA, na Europa, e vai ver no Brasil de uma maneira ou de outra.
A questão do aborto foi um dos pontos mais baixos da história recente da política brasileira. Discordo terminantemente de que tenha sido um movimento espontâneo da sociedade civil. Ao que tudo indica, e a própria imprensa investigou isso, o candidato da oposição disparou por meio da central de boatos da internet toda essa questão. Existia um acordo tácito entre os dois grandes partidos políticos brasileiros, PT e PSDB, de que essa questão não seria posta em debate, porque vem de aspectos dos mais arcaicos da sociedade brasileira, e nenhum dos partidos queria jogar isso contra o outro justamente por esse arcaísmo.
Quando o papa João Paulo II veio ao Brasil, houve um desconforto porque Ruth Cardoso [ex-primeira-dama] tinha se declarado a favor da legalização do aborto. E de repente temos a mulher do candidato da oposição [Monica Serra] dizendo que Dilma é a favor de matar criancinhas!
De fato meu lado perdeu, com muita clareza. Não sou filiado ao PT nem a partido algum. Todos aqueles para quem a modernização dos costumes é fundamental no interior do desenvolvimento das sociedades democráticas perderam. Não foi simplesmente uma questão ligada ao aborto.
Foi uma maneira que o pensamento conservador encontrou de pautar a agenda do debate político neste país. Mostraram que têm força, têm voto e conseguem bloquear a discussão. E agora não vão sair, vão ficar. Havia uma espécie de ilusão de que não havia espaço para um partido que conseguisse mobilizar o pensamento conservador no Brasil. Isso não é verdade, eles demonstraram que têm força.
Quando Serra colocou essa questão no debate, com clareza e todas as palavras, cobrando da adversária que ela se posicionasse, ele criou uma situação que, daqui por diante, é uma questão da política brasileira e todos vão ter de se posicionar a respeito.
Reprodução do post do Conversa Afiada de Paulo Henrique Amorim
Nenhum comentário:
Postar um comentário